Essa é a série de posts que nós estavamos mais ansiosos para inaugurar por aqui, e não tinha personagem melhor para essa estreia. Por meio do Brasileiros na Estônia contaremos algumas histórias de compatriotas que adotaram o país báltico como casa, e aceitaram compartilhar com a gente (e com vocês) parte dessa trajetória. Conversamos com a gaúcha Denise Fontoura, cantora, 38 anos, onde destes, 12 são fazendo de Tallinn sua segunda casa – ou já podemos chamar de primeira? Bora lá?
Por quê a Estônia?
Bom, se para muitos o país é novidade em 2020, imagine só em 2008, ano que Denise chegou na Estônia. Tá, mas e como isso aconteceu? “A Estônia surgiu a partir de um convite do guitarrista Jei Virunurm (nascido nos Estados Unidos, mas de origem estoniana) que eu conheci no mesmo período em que tinha mudado pro Rio de Janeiro. Naquela época (2004), eu tinha um grupo de hip hop chamado Anastácias com minhas amigas de infância”, relembra.
No ano de 2007, ela já considerava voltar para sua cidade natal, Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, quando recebeu o convite de Jei para vir pra Estônia para cantar música brasileira e, obviamente, não pensou duas vezes.
“Durante os primeiros 5 anos fomos residentes num clube de jazz chamado Clazz, onde desenvolvemos as chamadas “Brazilian Nights”, que aconteciam todas as terças. Era início da semana e o lugar estava sempre cheio de gente, não só de brasileiros (que dava pra contar nos dedos), mas também estonianos, russos e boa parte da comunidade de estrangeiros de Tallinn. Foi algo bem único e que ajudou a enriquecer a cena da música local”, explica.
A adaptação
Quando tocamos no tema adaptação em conversa com a Denise, ela foi enfática num ponto que concordamos em gênero, número e grau.
“A neve é linda na foto e durante as primeiras semanas, mas mudar pra um lugar com temperaturas extremas não é tão simples. Ainda mais naquela época, quando a mudança climática não estava tão acentuada e era comum fazer -30°C, -25°C, -20°C no inverno. O frio a gente até consegue segurar a onda colocando roupas apropriadas, mas a escuridão prolongada é algo que ainda me afeta, mesmo depois de 1 década”, explica.
Esse último ponto abordado por ela, de fato, é complicado. Nós moramos por três anos na Irlanda antes de nos mudarmos para Tallinn, e por lá os dias no inverno também são mais curtos, mas nada comparado ao que vivemos aqui. Além do frio, essas poucas horas diárias de luz do sol afetam diretamente não só sua rotina, mas também seu humor, disposição e principalmente o seu psicológico.
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“Quando chega janeiro e fevereiro eu quero realmente escapar pra qualquer lado que tenha sol. Não aquele sol decorativo mas o sol que esquenta a pele de verdade. Vitamina D gritando”, ressalta Denise.
Isso é completamente verdade. Nossas últimas férias passamos no Brasil e foi justamente entre dezembro e janeiro. A mudança climática é apenas absurda! Mas esse não é o único ponto, como bem relembra Denise.
“Além do clima, os códigos culturais e comportamentos são outros. As pessoas interagem de outra forma, não só com o estrangeiro, mas entre elas mesmas. Ter um relacionamento aqui não é igual a ter um relacionamento no Brasil, seja ele amoroso, de amizade ou de trabalho. Menos toques, mais silêncio”, conta.
Segundo Denise, até mesmo a forma como se faz amigos é distinta. Enquanto no Brasil chamamos todo mundo de amigo muito facilmente, aqui leva mais tempo pra isso acontecer. Mas quando se conquista a amizade de um estoniano, são pessoas que se pode contar de verdade.
“Eu percebo que nesses lados, de um modo geral as pessoas prezam muito pela privacidade, o espaço e a individualidade. O que pode significar frieza pra gente, pra eles pode ser visto como respeito ao espaço alheio, por exemplo”, explica.
Esse é um ponto muito interessante e verdadeiro levantado pela Denise. O que percebemos durante esse tempo morando por aqui é que os estonianos não tem muito “rodeio” para dizer algo. Se gostam ok. Se não gostam, eles vão falar mesmo e não podemos levar isso como alguma coisa ruim. Pra quem gosta de sinceridade, esse é o lugar. ?
Com relação à sua profissão, ela relata as dificuldades que encontrou no início, e ela sentiu essas diferenças culturais mesmo de cima do palco. Denise explica que pode ser bem desafiador lidar com um público que não se expressa como no Brasil que, geralmente em show, mesmo sem saber cantar acaba batendo o pé ou dançando. Para ela, esses detalhes foram super estranhos no início, e além de inicialmente ela ser muito tímida no palco, achava que o público não estava curtindo.
“Olhando de outro ângulo, é uma audiência muito observadora e crítica. Estão ouvindo e sentindo a música, do jeito deles mas estão. Depois de anos eu entendo e aceito melhor alguns aspectos, inclusive fiquei menos ‘passional’ – diga-se de passagem-, mas tem outros aspectos que eu acho que nunca vou incorporar pra minha vida. E faz parte e tá tudo certo”, complementa.
Tá, mas e a música?
Achou que eu iriamos deixar o tema passar batido?
A carreira da Denise começou faz muito tempo, até grupo de hip-hop (que inclusive abriu diversas portas para ela na música) ela fez parte, mas isso é história pra oooutra publicação. Nessa, eu pedi para que ela nos contasse um pouco mais sobre sua experiência em terras estonianas, e o relato é simplesmente encantador.
“Fiz muita coisa por aqui, tive oportunidades únicas como cantar com orquestras, colaborar com artistas locais, fui uma das solistas de um espetáculo chamado Missa de Bernstein, que foi um super desafio e meio que dividiu águas pra mim e decidi mesmo começar a caminhar com meus próprios pés. Fora a oportunidade mesmo de cantar em tanto países que na verdade nunca imaginei que iria na vida”, conta.
Atualmente, o foco da cantora é desenvolver seu trabalho próprio, ter seu “passaporte” dentro da música. Para ela, os últimos anos foram de bastante aprendizado. “Me profissionalizei, mas têm sido um trabalho muito calcado em cima de covers/versões da música brasileira – que não deixam de ser trabalhos lindos -, mas sinto a necessidade de voltar às minhas origens enquanto alguém que gosta de criar”, explica.
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No momento, Denise está finalizando três músicas originais que começou a gravar na Suécia com músicos há alguns anos. Umas delas é dedicada à sua filha, e o vídeo (animação) está sendo feito por um artista visual estoniano chamado Roland Seer, de Tartu.
Além do trabalho original, ela canta com dois projetos. O Obi Trio, que é voltado mais pro samba-jazz brasileiro e fazem parte o guitarrista carioca Braz Lima e o percussionista paulista Luiz Black, ambos com uma bagagem musical bem extensa.
Escutaí um pouquinho do Obi Trio para embalar o restante desta publicação:
O outro, juntamente com Luiz Black e outro músico recém chegado, o Marcelo C. Politano, explora a música tradicional nordestina e se chama Candango Trio.
Ainda na área da música, Denise está trabalhando na versão em português de um aplicativo Estoniano para crianças chamado Namesong, onde está traduzindo e cantando músicas de um compositor chamado Jaan Pehk para o mercado infantil brasileiro, também com um time de peso de músicos ( Luiz Black, Marcelo Politano e Rodrigo Manfrinatti).
Todos as experiências acima não são o suficiente? Quer mais? Beleza então, que tal cantar o hino nacional brasileiro em terras estonianas para a abertura do primeiro amistoso da história entre Brasil e Estônia?
Tem matéria completa em vídeo aqui também.
Não deixe de visitar quando estiver na Estônia
Obviamente, trocamos uma ideia com a Denise sobre seus locais preferidos e a dica dela é simplesmente sensacional. “Vou sugerir um lugar que por incrível que pareça nunca visitei. Se chama Rummu karjäär, que antigamente era um ponto de mineração e hoje possui uma pedreira enorme como um lago em volta e dentro do lago tem uma antiga prisão. A água é bem cristalina por sinal e o cenário chama bastante atenção”, sugere.
Espaço para mea-culpa, nós também ainda não visitamos e está na nossa lista desde que chegamos. Se o verão 2020 for tão quente quanto o seu antecessor, com toda certeza o passeio estará na lista e vocês o conhecerão em detalhes por aqui.
Dicas para quem vem à Estônia pela primeira vez
Nada melhor do que dicas de uma brasileira-local para quem pensa em visitar – ou até mesmo morar – na capital estoniana em breve. A Denise dá algumas dicas de ouro nas linhas abaixo e recomendamos demais a leitura.
- O básico é vir preparado para não passar frio. Como cantora, cachecol e touca são indispensáveis.
- Aconselho estudar minimamente sobre o país e o idioma. Muitos acham que é óbvio que quem está aqui fala estoniano fluentemente, mas não é bem assim. Apesar de a maioria dos estonianos terem um ótimo nível de inglês e muitos serem poliglotas, vale a pena investir em aprender o idioma local, principalmente pra quem está mudando pra cá, independente se vai ficar aqui 6 meses ou 1 ano. Hoje em dia já existem aplicativos e websites com curso básico da língua e é algo que vai facilitar muito na adaptação. Escutem a música local também 🙂
- É bom saber que povo aqui não curte muito o que se chama em inglês de “smalltalk” (a famosa conversa fiada) e não engajam facilmente em conversas com quem eles não conhecem. Pensando no lado da imersão, quando se quer aprender um idioma, isso é uma baita barreira, mas ainda assim eu encorajo todos que querem morar aqui a fazerem esse esforço.
- Outra dica é estar no horário e manter a palavra. São coisas fundamentais aqui.
- E por último, como todo lugar aqui também existe uma história, é um país que saiu “ontem” da União Soviética, existem tensões internas, é uma sociedade que tem sua própria dinâmica. Tem coisas que eu adoro e outras que realmente não gosto. E acho que quem pensa em morar aqui tem que vir aberto e emocionalmente preparado pra essas coisas, aberto para aprender e pra trocar também.
- Viajar pra mim acabou sendo uma forma de me conhecer e acho que super vale a pena visitar esse lado do mundo e ver que existem outras formas de viver e se organizar. E dessa experiência, cada um tira o melhor pra si.
Enfim… tere tulemast, galera!
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Fotos: Arquivo Pessoal Denise Fontoura
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