Desde o lançamento do TERE Tallinn, a ideia sempre foi de se tornar uma fonte não só de informação, mas também de discussão e contato com a comunidade brasileira, tanto quem já vive ou pretende fazer do país báltico sua casa. Dado a relevância do tema e as recentes discussões levantadas por conta do Mês do Orgulho LGBTQ+, celebrado em junho, abrimos o espaço do site para conversar com alguns brasileiros e aprender um pouco mais sobre como é a experiência da comunidade LGBTQ+ em Tallinn, e quais as diferenças com relação ao Brasil no que diz respeito as oportunidades, interações, preconceitos e convívio diário.

Apenas para um pouco de contexto, a Estônia descriminalizou a homossexualidade em 1992, e em 2014 se tornou a primeira ex-república soviética a aprovar uma lei que reconhece parcerias registradas pelo mesmo sexo, entrando em vigor em 2016.

Pelo menos no que diz respeito a teoria, a Estônia parece um lar até que tolerante para a comunidade LGBTQ+, – provavelmente muito mais do que alguns de seus países vizinhos. Porém, e na prática, é assim mesmo que funciona? Conversamos com os brasileiros Victor, Paulo e Natássia para entender um pouco mais e mostramos abaixo suas considerações:

TERE: Antes de se mudar para a Estônia, você chegou a pesquisar sobre como era a comunidade LGBTQ+ em Tallinn?

Paulo: Sinceramente, todo o processo de minha mudança para a Estônia aconteceu tão rapidamente que não lembro de ter pesquisado muito sobre o tema. No entanto, uma colega de faculdade que nasceu na Ucrânia e viveu aqui por algum tempo me alertou dizendo que eu estaria me mudando para um dos países menos tolerantes quanto à homossexualidade. Não me fez mudar de ideia obviamente, e também não me assustou muito. Acredito que inconscientemente já estava preparado para enfrentar algumas dificuldades.

Paulo comemorando a #tallinnPRIDE em 2020

Eu nasci e fui criado em uma cidade muito pequena no interior do Paraná e já moro na Europa há alguns anos. Se estivesse vindo de minha situação no Brasil, onde vivia completamente impedido, para a Estônia, me sentiria realizado. Porém, como me mudei para cá vindo da Irlanda, um país livre, que abraça totalmente a causa LGBTQ+, me senti restrito. Essa foi a minha maior dificuldade.

Victor: Sim! Isso na verdade foi um dos pontos em que eu mais hesitei quando precisei tomar a decisão de aceitar (ou não) a proposta que vir morar na Estônia. 

Isso porque antes de Estônia eu morei na Polônia, e quando fiz tal mudança não procurei sobre a comunidade/direitos e acabei tendo algumas experiências nada agradáveis lá (incluindo um policial me falando que se eu não parecesse gay, não precisaria ir na delegacia fazer um queixa contra homofobia). 

Com isso em mente, na hora de mudar para cá fiz a minha pesquisa e, para minha surpresa, não achei quase nada. Apenas um vídeo de um youtuber (Artur Rehi) em que ele fala que “se você não parece gay, não terá nenhum problema”, isso, obviamente, me deixou bem com o pé atrás para mudança… Mas depois que usei algumas outras fontes (mais confiáveis) resolvi dar uma chance para a Estônia. 

Outra coisa que pesquisei foi o tamanho da comunidade, o que não é grande – mas sem supresas aqui, afinal, o país tem poucos habitantes.

Natássia: Não tanto a questão da comunidade, mas de uma forma mais geral. Eu pesquisei como era em relação ao preconceito, por saber que se tratava de um país próximo à países mais fechados em relação à sexualidade, pesquisei se existiam leis, etc.

Pesquisei sobre eventos também, mas pouco, até porque eu quase não achava. Descobri aqui, com meus amigos, porque claro que semelhantes atraem semelhantes. E não foi muita surpresa ver que não eram tantos, e nem tão organizados.

LEIA TAMBÉM: TERE LISTA: Serviços e produtos brasileiros na Estônia

TERE: Na sua opinião, quais as principais diferenças entre a comunidade LGBTQ+ no Brasil e na Estônia?

Paulo: A comunidade LGBTQ+ brasileira é muito mais barulhenta e calorosa. Onde ela existe, as pessoas saberão. Acho que com muita luta a voz da comunidade no Brasil está sendo cada vez mais ouvida – as gerações mais antigas com certeza conseguiram pavimentar o caminho até aqui, não somente falando da luta pela inclusão e direitos humanos, mas também questões recorrentes como a misoginia e a derrubada do patriarcado.

A sociedade brasileira pouco a pouco quebra muitos paradigmas e o que antes na maioria das vezes não era dito, hoje nem se faz necessário mencionar. Essa para mim é a maior diferença entre a comunidade LGBTQ+ no Brasil e na Estônia – aqui, ser gay ainda parece ser um dos tabus que ninguém fala sobre.

Victor: O que mais me impressiona é como a comunidade é fechada. E quando digo fechada é em dois sentidos: de relutar em ter novos membros (principalmente se você não fala o idioma estoniano ou russo) e também das pessoas “guardarem” a sexualidade para elas. 

E quando digo “guardarem” não é que eles sejam enrustidos, mintam sobre a sexualidade ou algo do tipo, mas sim algo que reflete a personalidade dos estonianos como um todo. Eles são reservados e até você acessá-los ao nível que possa saber se são gays, lésbicas ou mesmo saber se têm ou não filhos é algo mais difícil. Enquanto isso no Brasil – pelo menos na minha bolha – a comunidade LGBTQ+ é muito mais receptiva e adora se expressar. 

É verão em Tallinn que você quer, @?

Natássia: A forma de expressão, a liberdade, e ousaria a dizer que até mesmo a felicidade. Acho que eu nunca vi um casal do mesmo sexo andando de mãos dadas na rua aqui ─ porém, seria isso um preconceito herdado dos tempos de ocupação ou apenas pelo fato de que eles são reservados?

E, já nesse ponto, aqui as pessoas não parecem se importar tanto. Ou pelo menos, como mulher, eu não sinto. Por exemplo, duas mulheres se beijando ficam menos objetificadas.

O público LGBTQ+ no Brasil já conseguiu mais espaço ─ existem muito mais bares, cafés, clubes e grupos do que na Estônia. De certa forma, é bom, mas por causa dos anos de carência, no Brasil, esse público também foi muito mais monetizado, o que eu não sinto aqui. No Brasil, também existe um senso maior de comunidade, talvez pelo grande número de pessoas. Tudo tem seus prós e contras.

TERE: No seu ponto de vista, o que o Brasil poderia aprender com a Estônia sobre o tratamento da comunidade LGBTQ+? E vice-versa?

Paulo: Na Estônia, as pessoas não utilizam a religião para sustentar seus argumentos contra a causa, como acontece muito no Brasil. Lá, muitas pessoas tendem a utilizar a religião para justificar atos de preconceito, algo que não vejo aqui. Eu acredito que, embora o país de modo geral seja um pouco contido, ainda prevalece o senso de liberdade que é comum na maioria dos países europeus. Sinceramente não posso falar a respeito de como sou tratado aqui socialmente, pois ainda encontro me adaptando a um grupo que nunca pertenci.

Victor: Na minha perspectiva, o que é mais legal aqui na Estônia é o quanto eles não se importam. Por exemplo, se dois homens estão de mãos dadas, ok. Se é um casal hétero, tudo bem também. E acho isso incrível, o quanto eu não preciso ficar vigilante a todo o tempo, coisa que eu fazia no Brasil. 

Já o que os estonianos podem aprender com os brasileiros é com toda a certeza se expressarem mais, salvo um ou dois, a maioria deles é super reservado e tentam se tornar unitários com a sociedade. No Brasil, somos especialistas em mostrarmos nossas peculiaridades, isso no meio LGBTQ+ e em outros aspectos da sociedade.

Natássia: Eu não acho que é meu lugar de fala aqui, porque eu sei que no core a Estônia tem um preconceito herdado, então eu só não sei o quão ruim ele pode ser em relação ao Brasil. Por ser straight-passing (identificável como hétero, algo comum para quem gosta de qualquer gênero), eu tenho menos dificuldades que qualquer um dos meus colegas homossexuais. Então, não é porque eu não sinto que não existem os problemas do governo/sociedade em relação à comunidade.

Natassia em viagem a Estocolmo, em 2019

Em termos de lei, entretanto, talvez a Estônia tenha avançado até mais: o direito de mudança legal de gênero existe desde 2002, quando no Brasil é desde 2009; reconhecimento do casamento do mesmo sexo em outros países da união européia, mesmo o casamento do mesmo sexo ainda não sendo legalizado aqui. Acho eu são esses pequenos avanços que se destacam.

O que a Estônia poderia aprender com o Brasil? A fazer festas LGBTQ+ melhores (risos).

LEIA TAMBÉM: Vistos na Estônia: Entenda como funcionam as permissões para turismo, estudo e trabalho no país

TERE: Como você vê a diferença cultural entre as pessoas LGBTQ+ no Brasil e na Estônia? Algo te chama a atenção com relação a isso? 

Paulo: A impressão que tenho é que os jovens gays nascidos na Estônia encontram alguma maneira de sair do país. Muitos mudam para grandes capitais européias ou até para outros continentes, e por fim ainda prevalece o pensamento conservador e arcaico das pessoas que aqui ficam. Não consigo imaginar como seria a vida de um gay estoniano nos anos oitenta, por exemplo. Muitos cresceram escondidos e assim continuam.

Victor: Então, acho que aqui temos que ter em perspectiva algumas coisas como o fato de que a Estônia só se tornou um país independente em 1991, ou seja, todas as pessoas com mais de 29 anos nasceram num regime (e as mais novas tiveram os pais nascidos em tal regime) em que a unidade era o foco, ou seja, sem expressões individuais. 

Com isso em mente, é claro que a comunidade ainda está se desenhando, bem como toda a identidade nacional da Estônia como um todo. Uma coisa que consigo observar muito é como os mais jovens se comportam, e é de um modo muito mais “livre” do que as pessoas da minha idade, por exemplo, já que eles têm essa memória soviética muito mais arraigada.

Já no Brasil, nós não tivemos nenhum regime que buscasse uma sociedade homogênea nesse nível- seja ele de esquerda ou direita -, então acabamos sendo muito mais livres, expressivos, então terei que bater nessa tecla mais uma vez para apontar as maiores diferenças. 

Foto: Ece AK no Pexels

Natássia: Eu posso contar nos dedos quantos estonianos eu conheço que você consegue identificar como LGBTQ+ em uma conversa. Claro que aqui, estamos falando dos estereótipos que temos dentro da sociedade, e também da própria comunidade, sobre o que é ser queer, mas por eles serem muito reservados, você não consegue identificar as pistas que normalmente são dadas por outras nacionalidades.

E acho que, de certa forma, essa introversão não ajuda com que eles se expressem. Acho que no Brasil as pessoas já começaram a se identificar, e se apresentarem de forma mais autêntica ─ não conseguiria dizer a mesma coisa da Estônia.

Para mulheres, particularmente, e até conversando com uma amiga lésbica aqui, eu noto que muitas mulheres se colocam mais como curiosas, mas na verdade elas são heterossexuais. Nos aplicativos de relacionamento, por exemplo, o que você mais encontra são meninas muito jovens, dizendo-se como curiosas, isso ou elas querem mais seguidores para o Instagram.

LEIA TAMBÉM: Quantos brasileiros moram na Estônia?

É engraçado que pensando em retrospecto, sempre parece que eu conheço mais gente queer aqui de outras nacionalidades do que estonianos. Talvez eles se escondem da gente.

TERE: Quais baladas, cafés, programas… você indica para quem está chegando (ou já está por aqui) visitar voltadas a comunidade LGBTQ+ em Tallinn?

Paulo: Não sou a melhor pessoa para responder essa pergunta, não sou um conhecedor da vida noturna de Tallinn. Sei que aqui existem alguns locais específicos para o público LGBTQ+, como o X-Baar, por exemplo. Porém não posso opinar, pois ainda não o visitei. Costumo ir com meus amigos ao Sveta, em Telliskivi. Este não é um local que foi criado com a intenção de servir à platéia gay, mas a atmosfera é incrivelmente inclusiva.

Sveta pelo visto é unanimidade por aqui. Foto divulgação: Sveta

Victor: Então, essa é a coisa que mais me incomoda aqui na Estônia como um todo! Não existem lugares que sejam desenhados e pensados para a comunidade – as famosas baladas gay – a não ser um bar (que eu fui uma vez e não consegui ficar nem 20 minutos). Todos os lugares ou são safe-spaces, como o Sveta, ou festas específicas para a comunidade. 

No geral, como eu já disse, você não terá nenhum problema por ser LGBTQ+ em nenhum espaço, mas também não pense que terá o senso de pertencimento. Por fim, acho que o Sveta é o lugar mais confiável que poderá ir aqui em Tallinn.

Natássia: Sveta Bar é o local mais comum no dia a dia, eu indico com ressalvas, porque ele não vai ser aquele típico lugar LGBTQ+ que você conhece do Brasil. Aqui existem eventos pop-up que são direcionados à comunidade LGBTQ+, mas poucos espaços que são para esse público-alvo. Aqui é muito quem você conhece, para que você seja levado pros eventos certos.


Para finalizar a publicação, deixamos aqui uma mensagem especial do Victor pra vocês:

“A Estônia é um país incrível e que ainda está construindo sua identidade, então, é normal que tudo ainda não seja perfeito! 

A comunidade LGBTQ+ em Tallinn ainda está se montando, revendo direitos, mas hoje em dia já podemos ter união estável com pessoas do mesmo sexo e também há leis contra a discriminação baseado na sexualidade. É o paraíso? Ainda não! Mas eu quero acreditar que estamos caminhando para ele.”

Foto: Via Freepik

E aí, gostou desse tipo de conteúdo falando sobre a comunidade LGBTQ+ em Tallinn? Nossa ideia é trazer outros temas para discussão e adoraríamos ouvir de vocês o que gostariam de ver e também o que acharam.?

LEIA TAMBÉM: Acomodação na Estônia: dicas e sites para encontrar o lugar perfeito

Siga o Tere Tallinn no Instagram @teretallinn e curta a nossa página no Facebook.
Compartilha com os amigos <3